Um grupo de pesquisadores(as), advogados(as) e representantes da sociedade civil percorre 11 capitais brasileiras para expor argumentações que se contrapõem ao projeto do governo federal de transposição do Rio São Francisco, conhecido como velho Chico. A caravana, que ocorrerá até 1º de setembro, esteve no Rio de Janeiro em 21 de agosto.
O principal alerta da “Caravana em defesa do São Francisco e do semi-árido contra a transposição“ é que o projeto não tem como foco matar a sede de quem sofre com a seca. Segundo os(as) especialistas, alternativas políticas mais eficazes são viáveis e seriam mais baratas, além de proporcionarem o desenvolvimento social da população.
A postura do governo, que insiste em uma obra que envolve impactos ambientais, econômicos, políticos e sociais, é repudiada pelo grupo. O governo federal afirma que 12 milhões de brasileiros(as) serão beneficiados(as) em todo o semi-árido setentrional com o desvio das águas do São Francisco para rios situados nos estados do Rio Grande do Norte, Ceará, Paraíba e Pernambuco.
Reagir à proposta que, à primeira vista, “resolveria” o problema da seca no semi-árido nordestino acaba sendo desconfortável. Porém, não faltam argumentos contrários à obra “faraônica”, cujos gastos podem chegar a R$ 20 bilhões dos cofres públicos, segundo membro da Caravana. Muito mais do que os R$ 4,5 bilhões anunciados.
Há soluções mais baratas e bem menos monumentais do que a transposição. Entre elas estão a construção de açudes, cisternas, poços artesianos e barragens subterrâneas. A Articulação do Semi-árido (ASA) tem desenvolvido importante trabalho no desenvolvimento de alternativas. “Já foram construídas 200 mil cisternas, com a participação das próprias comunidades, apoiadas pelo governo do estado. Esse trabalho vem impulsionando outros processos de inovação”, comemora o coordenador executivo da ASA, Luciano Silveira.
O que se pretende é repudiar a aplicação de recursos financeiros exorbitantes em uma iniciativa que se aproveita da calamidade vivida por pessoas sem que apresente soluções efetivas para as mesmas. É importante ressaltar que os recursos não acabarão ao término das obras, pelo contrário, serão necessários investimentos para o funcionamento e a manutenção do projeto.
O Brasil tem exemplos, como a rodovia Transamazônica. A construção permanece inacabada há 36 anos e consumiu cerca de US$ 1,5 bilhão. A estrada que ligaria a região norte à região nordeste foi idealizada pelo então presidente da República, o general Emílio Garrastazu, com o intuito de levar “os homens sem terra do Brasil a ocuparem as terras sem homens da Amazônia”.
Falácia da falta d’água
Além de um desperdício financeiro, há a desvalorização das condições do semi-árido brasileiro no que diz respeito à possibilidade de sua auto-sustentabilidade. Os(as) especialistas afirmam que não há falta de água na região e que a pobreza no semi-árido é por falta de políticas públicas e pela deficiência da gestão da água existente.
Segundo João Suassuna, engenheiro agrônomo e técnico em recursos hídricos da Fundação Joaquim Nabuco, o Nordeste conta com 70 mil represas, 37 bilhões de m³ de água. Este é o maior volume represado em regiões semi-áridas do mundo, superando a Baía de Guanabara, terceira maior do mundo com 3 bilhões de m³ de água. “O maior potencial de água represada está no Nordeste. O que não há é política para que a água chegue à população”. Devido à má gestão política de uso e distribuição dessas águas, apenas nove dos 37 bilhões de m³ estão sendo utilizados.
Tanto que há famílias vivendo à beira do São Francisco em condições de miséria. “Existem fortes indícios de que a realização do projeto pode perpetuar a chamada indústria da seca na região”, frisa João Suassuna.
Nordeste partido
Outro ponto importante que Suassuna põe em pauta é o caso da divisão que assolou o Nordeste logo após o anúncio das obras de transposição. “O São Francisco é o rio da integração nacional. E como tal, todo o projeto que se vislumbra ser executado tem que cumprir necessariamente esta lógica de união”.
Segundo ele, “o projeto de transposição visa o abastecimento de 12 milhões de pessoas no Nordeste setentrional. Significa dizer que pessoas serão beneficiadas nos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Os estados abaixo de Pernambuco, no Nordeste meridional, vão ter que exportar as águas do São Francisco. Efetivamente não terão participação alguma no projeto. Isso dividiu o Nordeste. Os estados de Pernambuco para cima são favoráveis ao projeto porque. Os estados abaixo de Pernambuco são doadores de água, portanto não terão participação alguma no projeto”, conclui.
Por que não há diálogo?
A Caravana critica a fragilidade da avaliação dos impactos e a não-abertura de espaços para o diálogo por falta do governo. É importante ouvir quem vive a realidade regional. “A gente precisa contar a nossa verdade, porque a mentira foi contada repetidas vezes e virou verdade. Se a nossa verdade não for contada, ela vira mentira”, defende o indígena Marcos Sabaru, representante dos Tingui-Botó, de Alagoas.
E relata que “a comunidade indígena vem sendo atingida há muito tempo com a falta de peixes e por não poder mais navegar pelo São Francisco. Somos um povo que habita o rio há milhares de anos, mas que não tem participação na discussão de um projeto que foi criado nos gabinetes. Nosso povo não teve participação na discussão de uma questão que está sendo colocada como solução para problemas que o afetam”.
O grupo também ressalta a inércia da mídia com relação à discussão sobre a transposição. O presidente da ABI, Maurício Azêdo, criticou: “Essa questão estaria hoje no primeiro plano das discussões nacionais, mas isso não se dá porque o que interessa aos grandes meios de comunicação é a perfumaria, é o secundário. Está interessada no que gera escândalo, o que pode gerar toda essa falsificação de todos os lados. Como exemplo podemos citar o caso do senador Renan Calheiros”.
E conclui afirmando que “há meses assistimos a um desperdício de espaço e de tempo que teria muito mais proveito social se fosse utilizado para a divulgação de problemas graves e dramáticos do país”.
Ainda no âmbito da comunicação social, foi chamada a atenção para o apelo visual do governo, por meio de imagens com crianças raquíticas, animais definhando, solo estorricado e açudes secos, forma de convencer a população de que o projeto é a salvação de quem vive em regiões com longos períodos de seca. Com grandes recursos para financiar propagandas, discursos de críticos ao projeto estão sendo distorcidos.
“O povo fica iludido achando que vai ter água, achando que o São Francisco vai entrar na casa de todo mundo. É um delírio. É igual prometer supermercado para quem está com fome”, compara o coordenador do Projeto Manuelzão, Apolo Heringer Lisboa.
Publicado em 24/8/2007.
Assinam a reportagem os estagiários do Ibase Carlos Daniel da Costa e david Amen
quarta-feira, 29 de agosto de 2007
Assinar:
Postagens (Atom)